Para que inventei
de mexer e remexer o baú de
minhas saudades ?. Não mais que de repente me
ví menino traquino, que é o referencial
nordestinês para se definir menino danado, impulsivo,
assassino libidinoso de galinhas cevadas. Me
ví menino bocó diante a beleza da primeira
professorinha, de face rosada por acentuada
camada de "Rouge", espalhando o seu
cheiro característico.
A pequenina cidade
acordava sob o auspicioso som da
banda de música municipal, irradiando emoções
em seus dobrados executados no patamar
da Igreja-Matriz de São João Batista e
Nossa Sra. da Conceição, lugar preferido para
onde me dirigia aos primeiros albores de
radiantes manhãs. Deitava-me na calçada e
ficava olhando para o alto, em êxtases oníricos.
O menino fixava em perene olhar o
vôo das andorinhas, que enfeitava os meus
sonhos em seus vôos rasantes, rabiscando no
azul do céu uma perfeita e exímia
sincronia entre nuvens superpostas, enviando-me
recados fantásticos dos mistérios circundantes.
Impregnavam-se em minha alma infantil um
colorido perfeito de projetos inebriantes.
Na estação
invernosa o menino sonhador assenhoreava-se
das biqueiras da venerada Igreja-Matriz, que eram as
melhores goteiras da cidade, por onde escoavam
abundantes jorros d'água, que no princípio da
chuva doíam no cocoruto, mas que à medida
que aumentava seu volume diminuía o impacto
na pequena cabeleira, cortada no estilo militar.
Como encantavam-me
os claros matinais, em seus primeiros albores !.
Na mente do menino existia um mundo que
terminava logo após a lagoa, entre os
verdes carnaubais dos sítios "Garapa" e
"Vertentes". Minha alma translúcida
deslizava mansamente sobre o límpido espelho
d'água da Mãe-Lagoa, ornada pelo verde
exuberante de suas margens. E os sonhos
do menino pegavam carona nas canoas
dos pescadores, acompanhando o risco n'água
deixado pelo trajeto das humildes
embarcações sertanejas.
As famosas
conversas noturnas alinhavadas na calçada
da casa de Sêo Lulu Curinga abordavam
histórias malassombradas, que causavam frio
na coluna e arrepios no curioso infante.
O silente menino absorvia os lances
interessantes das histórias de Trancoso e
de Camões, que em meu dialeto-matuto
pronunciava "Camonge". Ví, muitas vezes a
PROCISSÃO DAS ALMAS, nas madrugadas em que o meu
saudoso pai me despertava e me levava para
o antigo prédio onde funcionava a Agência
de Rendas Fiscais do Estado, alí na esquina
onde hoje está construído o "Castelinho", do
primo Castelo Torres. Eu via, ao longe, alí pela rua
Margarida de Freitas, imediações da casa de
Celeste Marinho, as supostas almas passarem
com algo aceso nas mãos, que meu pai me
fazia acreditar serem ossos das pernas
acesos e carregados em procissão pelas almas.
Depois que crescí e me fiz de
gente descobrí que se tratavam dos
machantes (Magarefes) Ussí de Sêo João Tito, seu
irmão Damião e mais uns dois outros,
que se dirigiam à matança (Matadouro público) para
abaterem seus caprinos e suínos, para posterior
venda no açougue público.
Ouço, nos confins
da esquina do tempo que lá se vai, os
dobres soturnos dos venerandos e vetustos
sinos da nossa amada Igreja-Matriz, quebrando
o imenso silêncio da cidadezinha ainda
adormecida, na cadência monótona daquelas
escalas, onde o tempo era um denominador-comum,
distribuído aos pedaços, marcando a marcha do
tempo e do ciclo vicioso da vida. Aquele
menino tinha a mente pautada pelos
mistérios dos sonhos, vivendo o cotidiano das mesmas
imagens e dos mesmos sons, sem fazer nada, num viver
apático,preguiçoso e inútil. Eu, um menino
sambudo, magro feito sibito baleado, afeito às
repetitivas brincadeiras e banhos fortuitos
e rápidos de menino fugitivo do olhar
fiscalizador do pai. Era um viver nostálgico
sem fim, de brincadeiras de pião, gaiatices, travessuras
e fuxicos. Viver ao meu modo era
e sempre será a minha filosofia. E
assim vou remexendo os meus arquivos memoriais
sempre bolorentos pelo mofo das horas do
quase esquecimento. SAUDADES...
Apodi de São
João Batista e Nossa Sra. da Conceição, aos
09 dias do mês de Outubro do ano de
Jesus Cristo de Dois mil e treze.
Marcos Pinto -
Comboieiro da saudade.